Na reflexão de Luiz Flávio Gomes, o consumo
individualista é a principal causa deste ódio: “Tudo que é estatal é visto,
hoje, com desconfiança, com descrédito. Isso se passa com a educação, saúde,
polícia, Justiça”
Fonte: Congresso em Foco , visitado em 12/05/2013. Endereço:
Por
Luiz Flávio Gomes*
Quando um jovem
domesticado pelo consumismo contemporâneo conversa com pessoas sexagenárias ele
escuta histórias incríveis, como a da boa qualidade da educação nas escolas
públicas, que antigamente a polícia e a Justiça funcionavam bem (ou muito
melhor que hoje), que os presídios não eram tão deteriorados, que se podia
despreocupadamente andar à noite pelas ruas da cidade etc. O serviço público
ou, pelo menos, alguns setores do serviço público funcionam bem.
O que caracterizava esse
bom serviço público? A padronização, que facilita o gerenciamento burocrático
assim como a realização do ideal de igualdade (mesmo serviço para todas as
pessoas), que está na raiz da distribuição dos bens públicos nos estados com
baixa desigualdade.
Ocorre que, a partir dos
anos 80, para salvar o modelo capitalista que entrava em recessão,
desenvolveu-se uma nova cultura, a do consumismo individualista, personalizado,
egoísta, que promove a socialização material do indivíduo assim como sua
diferenciação, conferindo-lhe status;
essa nova cultura conflita radicalmente com o serviço público padronizado,
generalizador, burocratizado. O serviço público, prestado pelos agentes e
autoridades do Estado, caiu em desgraça, porque não atende o desejo (a lei) de
diferenciação do consumidor, que passou a ser oferecido pelo mercado (veja W.
Streeck, em Piauí,
79, p. 61).
A partir do momento em
que nossos desejos começaram a se dirigir para o produto ou o serviço
personalizado, individualizado, estratificado ou sofisticado, que não é
evidentemente prestado pelo Estado, passamos a odiá-lo (ou a refutá-lo), até
por uma questão de diferenciação de grupos ou classes (dá status ter um carro,
especialmente quando personalizado, um atendimento médico distinguido, colocar
o filho numa escola cara, frequentar lugares ricos etc.). Primeiro caiu em
desgraça o Estado, depois o serviço público (os serviços privados seriam mais
eficientes); logo a contaminação alcançou também a política e os políticos (que
enfrentam uma brutal senão a pior crise de credibilidade).
Tudo que é estatal é
visto, hoje, com desconfiança, com descrédito. Isso se passa com a educação,
saúde, polícia, Justiça, agências públicas, infraestrutura governada pelo poder
público (aeroportos, portos, estradas, hospitais) etc.
Não há como não
reconhecer que as democracias ocidentais passaram por uma profunda
transformação neoliberal, que resultou mais acentuada em países com tradição
escravagista (como o Brasil). O que Albert Hirschman escreveu sobre as
ferrovias estatais da Nigéria (veja W. Streeck, em Piauí, 79, p. 65), bem sintetiza a nossa
atual realidade: “Conforme os mais ricos perdem o interesse pelo serviço
coletivo, e se voltam para as alternativas privadas – mais caras, mas, para
eles, acessíveis -, sua saída acelera a deteriorização dos trens públicos e
desestimula o seu uso, mesmo entre aqueles que dependem deles porque não podem
pagar por alternativas privadas”.
Ou seja: o serviço
público (educação, saúde, segurança etc.) consegue manter um certo nível de
satisfação enquanto é utilizado também pelos ricos. Aquilo que não é usado
pelos ricos se deteriora. Isso explica, adequadamente, a razão pela qual os
presídios nunca constituíram um bom serviço público. Quando os ricos (os que
podem pagar) deixam de utilizar um determinado serviço ou bem público, em razão
da lei da diferenciação do consumidor, vem o colapso. Esse é o motivo pelo qual
o BNDES tem vida longa.
* Luiz Flávio Gomes, jurista e presidente do Instituto Avante Brasil, está no blogdolfg.com.br.
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